Por Thais Martinho
– Desculpa, mas não vou poder ir — foi o que eu ouvi às vésperas da minha primeira viagem para fora do Brasil. Estava solteira há três meses quando decidi, com uma amiga do trabalho, passar o feriado de finados em Buenos Aires. Íamos nos hospedar na casa do tio dela, que havia se casado com uma argentina e vivia ali há muitos anos.
Com o súbito cancelamento, eu, que já estava com as passagens compradas e a cabeça em Buenos Aires, não tive outra opção: iria mesmo assim. Sozinha. Pela primeira vez.
No avião estava ansiosa, inquieta demais até mesmo para assistir um filme. No entanto, quando desembarquei em Ezeiza, não senti medo nem preocupação. Percebi que gostava da ideia de estar sozinha. Sentia que era uma pessoa diferente. Livre. Tive uma vontade genuína de bater papo com o taxista, com a minha tentativa de espanhol portenho que, com o tempo acabei aprimorando, mas até hoje causa surpresa e certa confusão aos locais — “Pero hablás como argentina!”.
Essa também seria minha primeira noite em um quarto compartilhado de albergue. Confesso que não consegui dormir muito bem. Minhas costas eram cutucadas pelas molas do colchão fino. Escutava a respiração e o ronco cadenciado de completos estranhos. O cheiro rançoso do quarto não era dos mais agradáveis. Ainda assim, me sentia feliz, como se fizesse parte de algo especial.
Na manhã seguinte, saí para explorar a cidade. Era um dia típico de primavera e meus olhos se franziam diante da luz. Sentia o sol aquecer minha pele, ao mesmo tempo em que ela pedia abrigo contra o vento. Buenos Aires sempre havia me intrigado. Talvez pelo charme dos argentinos que conheci no Brasil, sempre com aquele espanhol meio italiano e jeito galanteador de macho alfa latino. No entanto, o que senti explorando suas ruas pela primeira vez, foi inesperado.
Ao pisar na Avenida de Mayo, fui levada a um passado que não vivi. Sinto que estive ali antes, em outra vida. Seus edifícios imponentes, de arquitetura gótica contrastam com as flores e parecem uma colagem naquele céu de azul intenso. Respirei fundo, absorvendo todos aqueles cheiros, fechei os olhos e senti um nó na garganta. Estava em casa.
Buenos Aires tem cheiro de nostalgia. É um cheiro inconfundível, de madeira antiga, de poeira e de aromatizador de ambientes.
Buenos Aires tem uma personalidade complexa. A melancolia e a paixão caminham juntas, como em um tango. Ao mesmo tempo é como as velhinhas que se juntam para tomar o café da tarde na tradicional confeitaria Las Violetas, com seus vitrais coloridos. É uma cidade que sofre com saudades de seus tempos áureos. Essa nostalgia, no entanto, está completamente mesclada à energia dos jovens que caminham rápido pelas ruas, com sua moda peculiar. Dos amigos discutindo apaixonadamente política nos bares. Das brigas nas ruas. Ninguém xinga com tanta vitalidade como os portenhos. É uma arte.
Buenos Aires não tem apreço pelo moderno. Puerto Madero, que costuma encantar somente turistas, não se encaixa na cidade. Nos bairros mais tradicionais, nota-se a luta contra a modernização e o apego aos últimos indícios de identidade.
Buenos Aires não é Europa. É uma cidade completamente latina, há anos luz do mundo em que tudo funciona e horários são respeitados. É caos, é gritaria, é cumbia tocando nos quioscos. A diferença é que tudo isso acontece em um cenário europeu, com seus edifícios desenhados por arquitetos parisienses e construídos com pedras e materiais importados da Europa. Essa herança europeia foi por muitos anos restrita à aristocracia da cidade. Claro que em bairros como a Recoleta, essa situação se mantém. No entanto, no centro ou em San Telmo, os edifícios antigos se tornaram funcionais, ocupados por comércios, escritórios e apartamentos de classe média.
Cansada, depois de andar por mais de seis horas seguidas, busquei um café desses antigos, que preservam suas paredes e balcões de carvalho e seu mobiliário original, como uma cápsula do tempo. Aliás, os cafés ali são uma instituição, sendo alguns deles considerados patrimônio cultural. Os portenhos passam muito de seu tempo em suas mesas, que já foram palcos de importantes debates políticos e berço de grandes criações musicais e literárias. Pedi um café para o garçom, um senhor simpático que parecia trabalhar lá há muitos anos (como de fato acontece em muitos desses locais) e comecei a me sentir parte da cidade.
Mais tarde, de volta ao albergue, descobriria que eles não tinham mais quartos disponíveis para a noite seguinte e que teria que sair logo de manhã. Descobriria também, que a noite portenha muitas vezes começa as três da manhã e a verdade é que até hoje, não consegui ficar até o final para saber a que horas termina.
De ressaca e já em meu novo albergue, vi que dividiria quarto com duas conterrâneas, que acabaram virando companheiras de viagem. Juntas, passamos por algumas situações que as deixaram no mínimo desconfortáveis. Já eu, seguia em uma espécie de transe, completamente fascinada, como se fosse uma expectadora da minha própria história. Teve a vez em que nosso quarto quase foi invadido no meio da noite por uma legião de machos bêbados que “queriam ver as brasileiras dormindo”, como se fôssemos animais exóticos em exibição no zoológico. Teve a do taxista, provavelmente louco de cocaína, que dirigia como um alucinado enquanto cantava Menina Veneno e contava detalhes sórdidos e não solicitados sobre sua viagem de formatura ao Rio de Janeiro . Teve a do assédio vindo do interfone da embaixada brasileira, enquanto tentávamos tirar uma foto ali em frente.
Voltei a Buenos Aires pelo menos dez vezes depois dessa e em todas elas, me senti do mesmo jeito. Até um namorado portenho tive. Foram cinco anos convivendo com ele e sua família e aprendendo cada vez mais sobre o ritual do mate, do asado, os lunfardos, ditados peculiares e claro, os xingamentos. Juntos, viajamos por todo o país. Sempre que conto dele para as pessoas, ouço a mesma coisa: “ah, então é por isso que você gosta tanto da Argentina”, aliviadas, como se precisassem de uma motivação romântica para que aquilo fizesse sentido. O que elas não sabem, é que na verdade me interessei por ele porque ele era argentino e não o contrário.
A história com o argentino terminou, mas meu romance com Buenos Aires segue firme e forte. Já se passaram doze anos desde que nos conhecemos e meu coração ainda é mais portenho que paulistano. Bate mais forte toda vez que escuta um tango, ou ouve pelas ruas aquele sotaque inconfundível. E o que torna esse romance ainda mais especial é que ele coincidiu com a descoberta de outra paixão e até um novo propósito: viajar sozinha.
E sim, talvez nosso relacionamento dê tão certo porque é à distância, mas a verdade é que depois dessa viagem, tive a oportunidade de conhecer outras cidades incríveis, e nunca senti nada parecido com o que senti por Buenos Aires. Se me perguntam, posso dizer tranquilamente que acredito em amor à primeira vista. Ok, foi por uma cidade, mas é amor verdadeiro.
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Um comentário em “Coração Porteño – uma brasileira em Buenos Aires”